Depois de passar quase três séculos refugiado na Caatinga, o arroz-vermelho está de volta às mesas do país
No princípio, era o vermelho. Por dois séculos, não se soube de outro
arroz nas mesas brasileiras. Foi a primeira variedade cultivada por
aqui: inicialmente na Bahia, ainda no século 16, depois no Maranhão, introduzido pelos açorianos por volta de 1620. Ali, nas várzeas ao sul de São Luís, o arroz-vermelho encontrou abrigo e prosperou a ponto de fazer do Nordeste o maior produtor desse cereal no império português. Arroz-de-veneza, o chamavam – certamente uma alusão à origem remota daqueles grãos que tão bem haviam se adequado a nosso solo.
Ainda nesta reportagem:
Assim foi até o século 18, quando os portugueses importaram do sul dos
Estados Unidos as sementes do então chamado arroz-da-carolina – melhor,
mais produtivo, mais branco e mais rentável. O plano da Coroa era
substituir por completo as lavouras do arroz-de-veneza pelo novo grão.
Para isso, baixou um decreto em 1772, em que proibia o cultivo de
qualquer outra variedade que não o arroz branco. As penas pela
reincidência eram severas: um ano de cadeia e cem mil-réis de multa para
os homens livres e, para os escravos, “dois anos de calceta com surras
interpoladas nesse espaço de tempo”. Por “calceta”, entenda uma argola
de ferro presa ao tornozelo.
A proibição durou 120 anos, tempo mais que suficiente para que o
arroz-vermelho fosse quase levado à extinção e condenado ao
esquecimento. Se não sumiu, foi porque virou prato de resistência e
subsistência em certos grotões do Nordeste, onde se escondeu para fugir
da vigilância da Coroa. Está lá até hoje, sob o nome de arroz-da-terra,
refugiado em três vales contínuos do sertão nordestino: Piancó e Rio do
Peixe, na Paraíba, e Apodi, no Rio Grande do Norte. E, mesmo ali, também
periga desaparecer. Hoje a área produtiva é três vezes menor que cinco
décadas atrás.
Ainda assim, podemos considerá-la a maior extensão de arroz-vermelho
cultivado no mundo. E, ao mesmo tempo, uma espécie de fóssil vivo da
alimentação humana, pois se trata da primeira variedade domesticada
desse cereal. Só depois é que surgiu o branco, como uma mutação desse
grão original. “O primeiro arroz do mundo era vermelho”, assegura José
Almeida Pereira, pesquisador da Embrapa Meio-Norte e coordenador da
Fortaleza do Arroz Vermelho, projeto de desenvolvimento local criado
pela Fundação Slow Food.
É uma lavoura rara, portanto, pois são poucos os lugares onde ainda se
dá valor alimentar a esses grãos. O mais comum é encontrá-los em seu
estado selvagem, crescendo como invasores nos arrozais comerciais e
alimentando o ódio dos arrozeiros. Tem até campanha no Brasil empenhada
em varrer o arroz-vermelho do mapa. Tamanho é o estigma que a variedade
só deixou de ser considerada oficialmente uma erva daninha em 2009,
quando o Ministério da Agricultura revisou a classificação oficial.
O fato é que, historicamente, houve pouco ou nenhum interesse pelo
arroz-vermelho com fins comerciais. Se sobreviveu no sertão, foi mais
como uma cultura de subsistência, uma das poucas viáveis numa região
isolada e miserável, que só conheceu o arroz branco em meados dos anos
1940. Por falta de opção, virou ingrediente essencial da dieta
sertaneja, sobretudo na Paraíba. Ali, e em algumas comunidades rurais do
Rio Grande do Norte também, o costume é cozinhá-lo com leite e servi-lo
com feijão-de-corda – combinação, no mínimo, excêntrica para os
paladares destreinados.
Mais curioso ainda é o hábito local de polir o arroz-vermelho,
retirando justo aquilo que lhe dá cor e sabor, que é a película que
reveste cada grão, conhecida como pericarpo. Antigamente, o povo se dava
ao trabalho de passar horas socando o arroz no pilão, com a intenção de
deixá-lo o mais branco possível. Hoje, o serviço é feito em pequenos
armazéns de beneficiamento, onde uma máquina chamada “descopadeira”,
enorme e barulhenta, se encarrega de descascar e polir os grãos por meio
de um sistema de correias.
Apesar de rústica, a descopadeira tem papel crucial na manutenção de
uma cadeia produtiva sustentável. Ela gera três subprodutos, e nenhum é
desperdiçado. A casca vai para os aviários, onde se torna a serragem que
forra o chão dos galpões. Os grãos quebrados, conhecidos como “xerém”,
viram ração animal, que é também o mesmo destino do pericarpo. Essa
película vermelha, quando retirada, transforma-se num pó altamente
nutritivo chamado por aqui de “vitamina”. “É lá que está o ferro e o
zinco. E vai quase tudo para o porco”, diz Francisco Batista, agrônomo
de Piancó (PB) especializado no cultivo do arroz-vermelho.
Existe também a questão do sabor, que pode ser uma virtude para um chef
de cozinha, mas que no sertão chega a ser motivo de rejeição. “O povo
tem preconceito. Não gosta do vermelho. Dizem que a vitamina amarga
muito o arroz”, afirma Sueli Lira, moradora da zona rural de Apodi e
entusiasta declarada do cereal. O gosto é intenso, de fato, mas nada que
um bom garfo não possa se acostumar ou um bom cozinheiro não possa
adaptar. Sueli mesmo diz que já aprendeu várias receitas, com vitamina e
tudo: “Dá pra fazer escondidinho, risoto, doce de coco...”.
Sem a vitamina, o que fica é um arroz menos vermelho, menos nutritivo e
menos saboroso. E, de certa forma, mais parecido com o branco. “A
influência do arroz comercial é tão grande que as famílias estão polindo
o vermelho porque acham o branco mais bonito”, diz José Almeida, da
Embrapa. De fato, a chegada do arroz comercial nas últimas décadas
trouxe benefícios que as gerações antigas desconheciam, como a maior
produtividade, a agilidade no cozimento e, para certos paladares, o
sabor mais suave. Sem contar a incomparável vantagem de se comprar um
pacote no supermercado com os grãos já descascados e polidos, prontos
para o consumo.