"Nada, nem mesmo a ideologia empresarial, pode ser sobreposta à
Constituição Federal do país ou justificar sua brutal violação. Seu fim
primordial é garantir fundamentalmente o bem-estar de sua população como
um todo, o que inclui todos os segmentos diferenciados do país e as
gerações vindouras. Mais do que notícias alarmantes e discursos que
visam o bem privado, cobramos todos os setores envolvidos, incluindo os
meios de comunicação brasileiros, que tornem acessíveis à população,
antes de mais nada, as luzes da Constituição Federal do nosso país",
afirma Manifesto coletivo divulgado por antropólogos brasileiros, publicado pela Agência Repórter Brasil, 27-05-2013.
Eis o manifesto.
De maneira flagrantemente parcial, a mídia brasileira tem
criminalizado a regularização fundiária de terras habitadas por
populações indígenas no país. Para resumir os alarmantes argumentos, a
ideia mais comum veiculada é a de que esses processos são artifícios
fraudulentos, que transformariam “terras produtivas” e de “gente que
trabalha”, em “reservas indígenas”. Para bom entendedor, meia palavra
basta, como é de domínio popular.
O que se anuncia é que terras “produtivas” serão tornadas
“improdutivas” e, paralelamente a isso, “gente que trabalha” será como
que “substituída” por “gente que não trabalha”, isto é, “índios” – como
se os índios não trabalhassem ou produzissem. Esta metamorfose perversa é
atribuída, em muitos casos, a um suposto concerto criminoso de forças
nacionais e internacionais que atuariam em proveito próprio, tendo pouca
ou nenhuma relação com os legítimos ocupantes das terras.
Não é de hoje que este tipo de conjunção suspeita de ideias aparece
na opinião pública ou mesmo em documentos e outras manifestações formais
relacionados a trâmites legais ou matérias igualmente cruciais à
existência das populações indígenas. Estas mesmas ideias vêm se
repetindo cronicamente no tempo até os nossos dias, ao longo das muitas
ondas desenvolvimentistas de colonização que marcam a história do nosso
país desde os tempos da coroa portuguesa.
E sim. É sempre preciso trazer à luz o fato de que este arcabouço
ideológico cauciona, insidiosamente, ações e disposições tanto do Estado
brasileiro quanto de agentes privados na direção do extermínio,
submissão e esbulho daqueles povos.
Lamentavelmente, estamos muito longe de poder acalentar a esperança
de lançar este fatídico ideário, repleto de trágicos fatos que clamam
por erradicação, às trevas da memória nacional. Em tempos de rápida
repercussão dos discursos através de mídias eletrônicas, há mesmo a
impressão de que este ideário estaria se multiplicando em incontáveis
desdobramentos e manifestações. De conversas informais em redes sociais a
artigos de jornais, é em documentos como Relatórios de Impacto
Ambiental de grandes empreendimentos econômicos ou em célebres
contestações jurídicas aos processos de regularização fundiária que ele
aparece de forma mais perniciosa. Trata-se, no entanto, bem mais de uma
imensa cortina de fumaça comunicacional providencialmente interposta
entre a população e seus os direitos mais fundamentais, distorcendo e
obscurecendo o funcionamento dos principais instrumentos constitucionais
de resguardo desses direitos.
Como agravante central desta coleção de equívocos e distorções, está a
gravíssima acusação ética de que os antropólogos estariam supostamente
fraudando o estudo antropológico de identificação e delimitação,
conforme ele é juridicamente definido e regulamentado. É legítimo que o
leitor se pergunte sobre o que é exatamente isso. Não há qualquer
registro na imprensa que, afinal, lance verdadeira luz sobre o que é e
como se faz, enfim, a regularização de uma Terra Indígena no Brasil. O
que é, por que e como acontece, quem realmente faz, tudo isso permanece
nas trevas e ignorado pelo grande público ou mesmo por especialistas de
outras áreas. Tudo converge em uma situação que tem como resultado o
total desconhecimento deste instrumento técnico-jurídico e sua função
primordial neste tipo de regularização, representando um terreno fértil
para as especulações mais estapafúrdias.
Respostas adequadas a tais perguntas permanecem ausentes de manchetes
rápidas, notícias ou editoriais dedicados a tratar - e quase sempre
deslegitimar - o assunto. No entanto, estas respostas estariam bem mais
próximas a todos se a Constituição Federal, como expressão e instrumento
primordial de democracia e cidadania, não viesse sendo completamente
ignorada, senão sistematicamente desfigurada, por meios de comunicação e
outras frentes que atingem o grande público. Se alguns o fazem quase
involuntariamente, por mero desinteresse ou desinformação, há os que o
fazem deliberadamente, interessados que estão em dar continuidade aos
crimes efetivos raramente apurados, à exploração e à desigualdade,
contra os quais a carta magna se propõe a ser valioso instrumento de
representação coletiva.
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