Por: Ivo Lesbaupin – Adital
Este é o título do
“documento de urgência” assinado por um grupo de bispos e missionários
divulgado em 1973. Estávamos no quarto ano do governo Médici, o pior
período da ditadura civil-militar de 1964. O documento era uma denúncia
da política indigenista do regime que, imbuído de uma concepção
desenvolvimentista, de “Brasil Grande”, queria a todo custo construir o
conjunto de estradas que atravessaria a Amazônia, a Transamazônica.
Várias destas estradas cortavam terras indígenas. O governo lidou com
este empecilho passando por cima dos povos indígenas que ousaram se
contrapor a tais obras.
Os autores do documento
afirmam: “Essa calamidade, porém, se justifica dentro da visão do
sistema “pois o Parque Nacional do Xingu não pode impedir o progresso do
país”, como afirmou o presidente da FUNAI, General Bandeira de Mello
(Revista Visão, 25/04/1971)”. E mais adiante: “Referindo-se às
diretrizes da FUNAI para 1972, (o General) voltou a ressaltar que o
índio não pode deter o desenvolvimento” (O Estado de São Paulo,
26/10/1971).
A história parece estar se repetindo.
Em primeiro lugar,
contrariando a posição que tinha enquanto candidato, o governo Lula
ressuscitou um projeto do tempo da ditadura, a usina hidrelétrica de
Belo Monte, no rio Xingu. Este projeto, iniciado em 1975, foi
interrompido em 1989, em razão da resistência dos povos indígenas. O
Banco Mundial, que financiaria a construção, desistiu da obra. Somente
se voltou a ouvir falar neste projeto quase vinte anos depois, no
primeiro mandato do governo Lula.
O projeto foi remodelado
para reduzir a obra de cinco usinas para apenas uma, de modo a torná-lo
palatável. Mesmo no novo formato, a usina afetará seriamente o rio
Xingu, deixando o trecho conhecido como “Volta Grande” -cerca de cem
quilômetros– reduzido a um riacho. O habitat dos povos indígenas e dos
ribeirinhos será gravemente atingido.
Houve inúmeras tentativas
de povos indígenas, de movimentos sociais, de setores da Igreja
católica, inclusive do bispo local, D. Erwin Kräutler, de demover o
governo deste projeto. O Ministério Público Federal do Pará por várias
vezes determinou a suspensão da obra. A cada medida judicial contrária
ao projeto, o governo interpôs outras medidas para mantê-lo.
O IBAMA considerou que
havia razões ambientais suficientes para não liberar a obra. Para
afastar o IBAMA do caminho, o governo dividiu a instituição em duas. Não
foi o bastante: foi preciso afastar também alguns técnicos que
insistiam em ver problemas na realização da obra.
A licença para construir
incluiu uma série de condicionantes: a empresa responsável deveria
oferecer à população local melhorias em infraestrutura, em saúde, em
educação, assim como garantir condições dignas de trabalho para os
operários. A empresa cumpriu menos de 20% dos condicionantes, porém a
obra continua e os empréstimos do BNDES são regularmente concedidos.
Embora ciente do descumprimento desta parte do contrato (os
condicionantes), o governo não interfere. Mas toda vez que os operários
interromperam o trabalho ou os indígenas protestaram, a intervenção foi
imediata.
Não contente com a usina de
Belo Monte, o governo incluiu no PAC a construção de 28 usinas
hidrelétricas nos rios da Amazônia: desde Jirau e Santo Antônio, no rio
Madeira, até cinco usinas projetadas no Tapajós. Em cada um destes
lugares, enfrentou-se com a resistência dos povos indígenas.
Mas o governo não recuou.
Para garantir a realização de seus projetos e dos estudos ambientais que
os precedem, o governo instituiu a possibilidade de uso de tropas – a
Força Nacional – para obrigar os indígenas à submissão. A justificativa é
a mesma: o índio não pode atrapalhar o progresso do país.
O que está em questão tanto
na época da ditadura quanto hoje é a concepção de desenvolvimento. Para
a política dominante, desenvolvimento é crescimento econômico: produzir
cada vez mais, o que supõe aumento da demanda de energia. Portanto, o
Brasil tem de produzir mais energia elétrica. No entanto, frente à
gravidade da situação ambiental no planeta, dos riscos que corremos se
continuarmos este sistema de expansão da produção e do consumo, a
própria concepção de desenvolvimento deve ser repensada. O modelo
produtivista-consumista tem de ser superado.
Outro forte argumento dos
que se opõem à construção das hidrelétricas na Amazônia é que não temos
mais necessidade deste tipo de fonte de energia. As hidrelétricas
existentes, se forem reponteciadas, já terão como resultado um aumento
significativo da energia produzida. Em segundo lugar, o Brasil dispõe de
fontes renováveis de energia, tais como o sol, os ventos, as ondas do
mar. Nós não precisamos nem de novas usinas hidrelétricas nem de energia
nuclear, como o demonstram estudos de especialistas(1).
Na Alemanha, durante anos
os governos defenderam que s energia nuclear era imprescindível como
fonte de eletricidade. Depois da tragédia de Fukushima, o governo alemão
cedeu e desistiu deste caminho: não construirá mais usinas nucleares e
vai pouco a pouco desativar as usinas existentes. Está investindo
seriamente em energia solar e eólica.
Porém o desprezo em relação
aos povos indígenas não se limita ao caso das hidrelétricas, de per si
extremamente grave. Soma-se a isso a tragédia vivida pelo povo
guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul, obrigado a viver em locais
exíguos ou na beira da estrada, constantemente submetidos a investidas
armadas de jagunços ou da polícia local a serviço dos fazendeiros. Aí o
conflito é motivado pela ganância dos fazendeiros, do agronegócio,
desejosos de se apropriar das terras indígenas. Como diz o jornalista
Washington Novaes:
“Enquanto isso, parece
iminente a ameaça de conflito armado entre 45 mil índios
caiovás-guaranis e fazendeiros que disputam suas terras em MS. É tema
sobre o qual o autor destas linhas escreve há décadas. Centenas deles já
morreram nos conflitos. E um jovem guarani suicidou-se no dia seguinte
ao de seu casamento; enforcou-se numa árvore e deixou escrito na terra,
sob seus pés: “Eu não tenho lugar” (“Os índios, a legislação e quem a
desrespeita”- O Estado de S.Paulo, 31/05/2013). Estas linhas já estavam
escritas quando mais um índio foi assassinado no mesmo estado, desta vez
da etnia Terena, numa ação de reintegração de posse em favor de
fazendeiros de que participaram a polícia federal e a polícia militar do
Mato Grosso do Sul.
Hidrelétricas, mineradoras,
agronegócio, desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo versus direitos
dos povos indígenas: qual a diferença entre a política indigenista do
atual governo e aquela da ditadura de 1964?
Nota:
(1) Cf. Greenpeace Brasil. [R]evolução energética – a serviço de um desenvolvimento limpo.(www.greenpeace.org.br , dez. 2010) e WWF. The energy report – 100% renewable energy by 2050.(www.wwf.org , out. 2010).
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.
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